Movimento Adventista
O início do século 19 representa o período demarcatório quanto às origens do movimento da IASD. Tal período exerceu grande impacto na organização e formação dos EUA. Esta época foi marcada por intensas e constantes transformações que se projetaram nas áreas sociais, política, econômica e, sobretudo religiosa. Ao descrever o período formativo do milerismo em relação à história americana, Schünemann (2002, p.35) ressalta que o período de formação das ideias de Miller compõe ainda a fase heroica dos Estados Unidos, também chamada de, “a era dos bons sentimentos”.
Ao comentar sobre os primórdios do milerismo nos EUA, Knight (2000, p.10) estabelece o contexto histórico-religioso prevalente, afirmando que as crenças deístas tornaram-se populares tanto na Europa como na América do Norte durante a última metade do século 18, mas as atrocidades e excessos da Revolução Francesa, na década de 1790, levaram muitos a duvidar de que a razão humana fosse base suficiente para a vida civilizada. O resultado foi o abandono generalizado do deísmo e o retorno de muitas pessoas ao cristianismo durante as duas primeiras décadas do século 19.
Tal fenômeno deu origem a um movimento interdenominacional nos EUA que se tornou conhecido como o Segundo Grande Despertamento, o qual era composto por seguidores de diversas denominações religiosas dentre as quais destacamos: Batistas, Metodistas, Presbiterianos, Congregacionalistas, etc. No entender de Handy (1984) tal movimento foi uma reação do povo americano à filosofia preconizada pelo iluminismo europeu.
William Miller
Dentre os intérpretes e estudiosos protestantes deste período, William Miller destacou-se por seus cálculos cronológicos das profecias bíblicas. Sendo assim, o milerismo nasceu num mundo dominado e agitado pela religião e por ideias religiosas, ou seja, a religião era um fenômeno dinâmico e crescente nos Estados Unidos da América e o milerismo se ajustou a tais realidades neste clima de dinamismo expansionista. Dentre os principais defensores do pré-milenialismo, William Miller (1782-1849) destaca-se como seu principal expoente no território dos EUA.
Filho mais velho de uma família de dezesseis filhos, Miller nasceu em Pittsfield, estado de Massachusetts. Crescera em um lar marcado pelo senso de religiosidade em Low Hampton na região noroeste do estado de Nova Iorque. Ao descrever os momentos iniciais da vida de William (Guilherme) Miller, Wayne R. Judd (1987, p.17) destaca que foi uma clássica história de pobreza, zelo incomum para aprender a ler, necessidade de trabalho diligente na fazenda para assegurar a sobrevivência. Sua piedosa mãe ensinou-o a ler, mas sua sede de conhecimento não se satisfez com os poucos livros que foi possível alcançar.
Durante o período de sua juventude buscou satisfazer seu intenso interesse pelo conhecimento tornando-se assim, um autodidata. De acordo com Dick (in Land, 1986, p.3), havia diversos homens de influência em sua vizinhança os quais lhe emprestavam livros para leitura. Miller lia cada capítulo avidamente, devorando os conteúdos da História Antiga e da Europa Moderna. Sua mãe exerceu forte influência durante os anos de sua infância e juventude. Entretanto, quando Miller se casou com Lucy Smith Poultney, em 1803, mudou-se para Vermont, onde passou a conviver com pessoas cultas que preconizavam o pensamento deísta, o qual veio a ser defensor também. Dentre os autores deístas lidos por William Miller, na concepção de Knight (1993, p.28) destacam-se os seguintes: Voltaire, Hume, Paine e Ethan Allen. Entretanto, na chamada Segunda Guerra de Independência entre os EUA e a Grã-Bretanha (1812-14), Miller serviu como tenente e capitão na milícia de Vermont. Para Damsteegt (1977, p.13), tal experiência o desiludiu quanto aos seus princípios deístas.
Os resultados de sua participação durante o período de guerra são assim descritos por Knight (1993, p.31), ... os anos passados em guerra trouxeram seu Deísmo a uma crise em ambas as áreas de descontentamento. Por um lado, o conflito o pôs face a face com a realidade da morte. Em dezembro de 1812, estando na linha de frente do pelotão civil, Miller viu uma de suas irmãs e seu pai morrerem num espaço de três dias. . . A guerra não trouxe apenas o Deísmo de Miller a uma crise quanto à morte e aniquilação, mas suscitou também suas dúvidas quanto à natureza humana. . . Quanto mais eu leio [disse ele], mais me convenço quanto ao caráter corrupto do homem.
Quando saiu do exército, começou a trabalhar como fazendeiro, passando a devotar mais tempo às questões cruciais da existência humana. Em 1816, Miller começou a frequentar a Igreja Batista da qual seu avô fora pastor. Segundo Sylvester (apud Damsteegt, p.14), a partir de então, seus amigos deístas passaram a desafiá-lo, o que fez com que Miller desse início a uma série de estudos intensivos da Bíblia de tal modo que pudesse justificar sua decisão em aceitar a fé cristã novamente.
As 2.300 tardes e manhãs
Após dois anos de estudos intensivos nos conteúdos das profecias bíblicas, Miller tentou compreender e harmonizar os seguintes períodos proféticos: (a) Os 2.300 dias de Daniel 8:14; (b) os 1.290 dias e 1.335 dias de Daniel 12:11,12, e, (c) os 1.260 dias de Apocalipse 11:3 e 12:6. Tal estudo levou-o a concluir que Cristo haveria de voltar à Terra em torno de 1843 d.C. Na concepção de Miller, as profecias eram imprescindíveis para a compreensão dos conteúdos da Bíblia, a qual passou a considerar como um livro profético.
Um aspecto interessante a ressaltar neste período é que Miller não foi o único a buscar respostas a tais questões. Em um minucioso estudo sobre as predições quanto ao cumprimento da profecia de Daniel 8:14, Froom (1954, vol.4, p.403) destaca o fato de que neste período cerca de setenta e cinco expositores, espalhados pelos quatro continentes, os quais, antes do primeiro livro sobre profecia de William Miller ser lançado, anteciparam seus principais achados os quais estavam essencialmente de acordo no que tange ao tempo que ele [Miller] enfatizou.
Como resultado de seus quinze anos de estudo da Bíblia, em 1831, Miller editou uma série de oito artigos os quais foram publicados num periódico semanal da Igreja Batista, Vermont Telegraph entre os anos de 1832-33. Os artigos publicados em 1833 foram reunidos em forma de um opúsculo intitulado, Evidences from Scripture and History of the Second Coming of Christ About the Year A.D. 1843, and of His Personal Reign of 1000 Years. Em sua obra The Burned-over District o historiador popular americano Whitney R. Cross (1950, p.291) apresenta sua impressão quanto à interpretação bíblica de William Miller afirmando que sua previsão quanto ao tempo cumulativo apontava inescapavelmente para um Advento pósmilenialista e não prémilenialista.
Tal visão era defendida por vários estudiosos contemporâneos de Miller. . . Sua doutrina em cada aspecto sintetizava ortodoxia. Sua cronologia elaborou e refinou apenas a espécie de cálculos que seus estudiosos contemporâneos já haviam feito, mas tornou-se mais dramático por causa de sua exatidão e porque o evento predito era mais surpreendente. Em dois pontos apenas ele foi dogmaticamente insistente: que Cristo retornaria e que ele viria ao redor de 1843.
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Ao comentar o pensamento prevalente nos dias de Miller, Knight (1993, p.39) salienta dois aspectos característicos, a saber: o racionalismo e o literalismo. O elemento racionalista foi uma herança do Iluminismo do século 18 e o Deísmo a sua expressão religiosa. Miller e sua geração viveram num mundo altamente afeiçoado às abordagens racionais no que tange a todas as coisas incluindo a religião. Assim, Miller se referia a sua experiência com a Bíblia como uma “festa da razão”. Seguindo este impulso, o método evangelístico de Miller visava definitivamente alcançar a mente de seus ouvintes ao invés de suas emoções.
Na concepção de Miller, o estudo das profecias era necessário para se obter uma mais apurada e completa compreensão dos conteúdos bíblicos. Ao comentar a metodologia hermenêutica de Miller, Damsteegt (1977, p.19) destaca que:
Ao determinar o cumprimento das profecias ele empregou o princípio hermenêutico que os símbolos não eram cumpridos de um modo figurativo, mas apontavam para uma realidade histórica. Por exemplo, os símbolos no livro de Daniel e Apocalipse foram vistos como a descrição da história do povo de Deus desde o tempo do seu princípio até o fim do mundo. Assim, Miller pode ser classificado com os “historicistas” [historicismo]* – um termo usado por alguns estudiosos para designar sua hermenêutica.
A abordagem da interpretação de William Miller
Ao salientar o contexto da abordagem de Miller quanto aos seus estudos e escritos, Judd, (apud Schünemann, 2002, p.11) destaca que:
as regras desenvolvidas por Miller apelam ao homem comum e à lógica do bom senso. Ele [Judd] considera que esta proposta era completamente ajustada ao espírito da “era Jackson” nos Estados Unidos. O pensamento centrado no pragmatismo do bom senso que orienta toda a interpretação feita por Miller está em harmonia com o pensamento religioso e mesmo filosófico de sua época. As suas conclusões representam não ideias pessoais, mas, são fruto de uma mentalidade própria da época.
Durante sua busca investigativa, Miller abordou a Bíblia como um livro auto-interpretativo, passando a estudá-la apenas com o auxílio de uma concordância (Cruden’s Concordance). Em sua obra Miller’s Apology and Defense in Knight (1993, p.40) ele [Miller] apresenta sua visão fundamental quanto à interpretação bíblica afirmando que:
a escritura deve ser sua própria expositora, desde que ela é uma regra para si mesma. Se, dependo de um professor para expor seu conteúdo, e ele passa a conjeturar seu significado, ou deseja assim fazer em benefício de sua crença, ou para ser considerado erudito, então sua predição, desejo, crença ou erudição se tornam minha regra, não a Bíblia.
Em suma, conforme o historiador americano David L. Rowe (1987, pp.51, 70) o milerismo pode ser compreendido como o produto de um processo contínuo de regeneração espiritual e intelectual na vida cristã estadunidense. Assim sendo, ele propõe que o milerismo foi estabelecido a partir de três fenômenos religiosos dos EUA, a saber, o pietismo, o revivalismo e o milenialismo, os quais são assim descritos por ele:
Reavivamento e experiência de conversão são processos pelos quais compete ao indivíduo por si fazer a decisão moral. O milenialismo dá forma específica ao sonho pietista de antever a Nova Jerusalém e prover o tempo cósmico para sua construção e cumprimento. Pietismo, então guia a vida do converso neste mundo na preparação para a vida com Deus na Cidade Celestial.
Em face às análises dos aspectos relacionais entre os fenômenos religiosos do movimento milerita com a sociedade dos EUA, é possível compreender as principais causas que contribuíram para o surgimento do adventismo.
Referências bibliográficas:
Texto: Pr. Dr. Renato Stencel - Diretor do Centro de Pesquisas Ellen G. White - Brasil
— CROSS, W.R. The burned-over district. The Social and Intellectual History of Enthusiastic Religion in Western New York, 1800-1850. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1950.
— DAMSTEEGT, P.G. Foundations of the Seventh-day Adventist message and mission. Grand Rapids, MI: Michigan William B. Eerdmans Publishing Company, 1977.
— FROOM, L.E. Movement of destiny. Washington D.C: Review and Herald Publishing Association, 1971.
— JUDD, W.E. William Miller – Disapointed Prophet. In BUTLER, J. M. & NUMBERS, R. L. The disappointed. millerism and millenarism in nineteenth century. Bloomington, IN: Indiana University Press, 1987.
— KNIGHT, G. R. Breve História dos Adventistas do Sétimo Dia. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2000.
— KNIGHT, G. R. Millenial fever and the end of the world. Boise, ID: Pacific Press Publishing Association, 1993.
— LAND, G. [ed.] Adventism in America – A History. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, 1986.
— ROWE, D.L. Thunder and trumpets – Millerites and Dissenting Religion In Upstate New York, 1800-1850. Chico, CA: Scholar Press, 1985.
— SCHÜNEMANN, H.E.S. O tempo do fim: uma história social da Igreja Adventista do Sétimo Dia no Brasil. Tese doutoral defendida no departamento de Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, 2002.
— TIMM, A.R. O santuário e as três mensagens angélicas. Engenheiro Coelho, SP: Imprensa Universitária Adventista, 2000.